segunda-feira, 29 de agosto de 2011

VALENTINA - MÁRCIO VASSALLO


VALENTINA
MÁRCIO VASSALLO

Valentina morava num castelo, na beira do longe, lá depois do bem alto. E a princesa não entendia porque a rainha e o rei passavam o dia todo fora de casa.
Eles diziam para ela que precisavam trabalhar. Mas Valentina não conseguia entender porque um rei e uma rainha tinham que trabalhar. A princesa não entendia: por que os pais dela tinham que sair antes de o sol engatinhar?
Por que todos os dias eles tinham que descer lá do castelo?
Por que eles tinham que descer e subir aquele tanto de vezes?
E a menina entendia menos ainda quando o rei e a rainha diziam que só saiam do castelo para a princesa ser alguém na vida. Valentina vivia dizendo que não queria ser alguém na vida. Ela dizia que já era alguém e pronto, não precisava ser mais ninguém. Mas os pais da Valentina explicavam que um dia ela ia entender por que eles realmente precisavam descer do castelo.
Mas aquele dia não chegava nunca.
E Valentina, que só tinha ouvido para o descabido, continuava sem entender: por que uma rainha e um rei precisavam trabalhar?
Por que eles precisavam descer do castelo para fazer muitas coisa lá embaixo, em vez de ficar o tempo todo com ela?
Quando os pais da Valentina saíam, ela ficava com a tia – uma donzela de costela aparecida. E a tia da Valentina, com voz de buzina, gostava de dizer para os vizinhos que a menina tinha uma beleza que não cabia em página de livro. É verdade: a beleza da Valentina cabia mais era no olho de quem conhecia ela de perto.
Porque só quem chegava perto da Valentina é que via que a princesa tinha orelha de abano para escutar cochicho de nuvem e perna comprida para pular pensamento. O riso da Valentina esparramava pelo rosto que nem gato espreguiçado. E ela também tinha uns óculos espichados, que ficavam ali, na frente dos olhos, feito guarda-sóis transparentes.
Então quem conhecia a Valentina de perto não entendia como uma princesa assim podia viver ali, tão longe de tudo, como se em longe de tudo não pudesse existir boniteza. Além do mais, ninguém explicava direito para a menina onde é que ficava esse tal de Tudo.
Bem, na realidade, Valentina achava que Tudo era ali onde ela vivia. E mesmo como os dragões do lugar apavoravam todo mundo e cuspiam fogo e barulho para todos os lados, a rainha e o rei cercavam o castelo com pensamentos bem esticados e acalmavam a filha, contando histórias para ela dormir.
E a princesa gostava de mostrar para as amigas que o castelo onde ela morava tinha torre com escada enluarada e porta de asa aberta. Valentina também mostrava que a cama em que ela dormia tinha vontade guardada para a noite e cheiro de abraço amarrotado. E o castelo da Valentina tinha brilho que transbordava da sombra. O quintal da Valentina tinha galo que esfregava o berro do muito cedo.
O quarto da Valentina tinha janela com vista para dentro e cortina que abria ideia.
E ela ficava um tempão olhando para um monte de outras paisagens, de caber suspiro. E ela olhava para frente, olhava para trás, olhava para os lados, olhava para cima, olhava para baixo.
Aliás, foi num dia assim, olhando para o lá embaixo, na beira de outro longe, que a Valentina viu o tal lugar que as pessoas chamavam de Tudo.
E a princesa foi com os olhos e com os pés conhecer Tudo de perto.
A rainha e o rei diziam para a filha que era perigoso descer do castelo sozinha, que lá embaixo tudo era bem diferente de onde elas viviam e por isso foram junto.
Só que quando chegou lá pela primeira vez, Valentina achou que em Tudo as meninas eram iguais. Afinal, todas usavam as mesmas roupas, todas falavam do mesmo jeito, todas gostavam das mesmas cores, dos mesmos passeios, das mesmas pessoas, todas queriam as mesmas coisas o tempo todo.
Na curva do bem fundo, naquele lugar, as meninas sonhavam em ser princesas.
Mas Valentina não queria ser princesa. Princesa ela já era onde quer que estivesse.
E ela ficava toda sorrida, sempre que descia junto com a rainha e o rei, e, la de baixo, apontava onde os três moravam, no meio de um bocado de outros castelos, num morro do Rio de Janeiro, logo depois do mais longe de tudo.

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